"[...] Agora eu sei! Agora eu sei o que vocês formigas sentiram naquela época", pensei ter dito ao acordar hoje de manhã depois de uma noite muito mal-dormida. Mas aqui em casa não têm formigas, por que eu estava falando com elas? Espremi a caixinha fresca de suco de laranja com manga e tentei lembrar o porquê dessa loucura.
Quando eu era bem pequeno, eu gostava de fazer uns experimentos bizarros numa mistura de curiosidade e crueldade infantil. Nada muito grave, talvez mais cruel na época do que agora. Por exemplo, quando eu via uma barata eu dava só um tapinha com as havaianas para imobilizá-la e depois arrancava a cabeça com um palito de picolé pra ver o que acontecia. Ou seja, era nojento, mas não covarde ou brutal (desculpem-me os que amam e lutam pela preservação das baratas). Nunca tive coragem de ser o carcará de Bethânia e pegar, matar e comer as rãs que "pescávamos" nos brejos mageenses. Fazer maldade com gatos ou ratos então (como alguns pestes faziam), nem pensar. Mas os insetos, estes sim faziam um sacrifício-mor pelo bem do meu conhecimento. Que o digam as formigas.
Eu lembro de sentar no paralelepípedo da calçada e esperar até que aqueles formigões saíssem de trás dos raminhos de capim que cresciam entre a pedra e a rua. Daí, com a unha maior do que mãe permitiria, eu as pegava cuidadosamente e as colocava num copinho. A maioria das vezes, eu só olhava enquanto elas davam círculos sem fim no vidro. Outras vezes eu as jogava dentro da camisa de alguém pra ver se fazia cosquinha.♥
Mas eu gostava mesmo era de testar a resistência das bichinhas ao calor e ao frio. "Quanto tempo elas duram?", eu repetia sozinho antes de caminhar pra cozinha. Lá, eu abria a geladeira e o congelador, que sempre depois de descongelado parecia com minha idéia de Alaska: uma camada de gelo fino e aquela névoa fria se perdendo no horizonte. Daí, eu pegava uma formiguinha e sussurrava: "vai ao final e volta. Se voltar, eu te tiro" Com muito cuidado, eu as colocava no chão de metal frio. Um passo, dois, três...congelavam. Quando mãe fazia bolo, eu tentava o mesmo no forno, mas nesse caso nunca teve um passo sequer. "Bicho fraco!", pensava. Agora eu sei.
O inverno finalmente chegou na Finlândia. Semana passada, em uma só noite caiu neve o suficiente pra fazer todo motorista soltar um sonoro "Taquilpariu!" Aqui em Lahti foram quase 10 centímetros de neve que ainda está nas ruas. A temperatura finalmente se mantém abaixo de zero. É muito frio, mas dos males o menor, porque não chove. Tirando o vento de rachar a cara que vem eventualmente, é um tempinho suportável. E a neve dá uma claridade extra pros dias curtos e sem sol. Além disso, tem o fator que muitos brasileiros não entendem: todas as casas tem aquecedor, então dentro de casa os dentes não se batem. O problema mesmo é a mudança de tempo. O outono é frio, mas nem tanto. Daí, com qualquer agasalho se safa enquanto os aquecedores ficam a meia-pressão. Mas é na mudança de estação que eu sinto no corpo o sofrimento dasquelas formigas.
Se não me engano, todas as casas têm termômetros nas janelas. Além disso, o serviço de previsão do tempo online é bem preciso. Tudo isso pra você saber onde estará se metendo ao passar pela porta. O problema é que sempre tem o fator psicológico de resistência ao frio tipo acho que dá: "acho que dá pra ir só com esse moleton", "acho que dá pra ir sem luva", "acho que dá pra ir sem toca"... e aí, se estrupia. Nos dez primeiros passos tudo vai bem. Mas aí a orelha começa a esfriar, o vento passa entre os panos e vai até o osso, o ser se encolhe como...formiga (!!!), puxa a gola da camisa e faz bafo pra ver se esquenta. Nada. Os dedos enrugam, pinicam e doem de frio. As beiças racham como sertão e os olhos esbugalham bolados: "nem cheguei na esquina!" Ou seja, a adaptação à transição entre o frio e o "frio pra caralho" é que doi, literalmente. Essa mudança também afeta dentro de casa.
Eu e a Wife moramos numa pienkerrostalo, um tipo de casarão de madeira dividido em apartamentos para alugar (tipo esse da foto). Neste caso, não temos o poder de ligar os aquecedores. Eles ligam numa central. Mas temos um botãozinho que controla a intensidade de calor dentro de casa. Lá em Outubro, quando começou a esfriar, a central ligou os radiadores, mas na potência fraca. Como ainda estava meio frio, o que fiz: rodei quase todos os botãozinhos para o máximo. Mas nessa semana, com a queda da temperatura, a central aumentou a potência do aquecedor e não avisou. Ou será que as formigas roeram os avisos?! Só sei que ontem, quando fui dormir senti aquele bafo quente quando entrei no quarto. Pensei que era por ter acabado de vir do quintal. Deitei e me cobri. 10 minutos depois, isolei a coberta e as meias. Só de short e descoberto, dormi. Sonhei que o travesseiro me sufocava. Sonhei que o mundo tinha secado (dava pra ir ao Brasil de ônibus!!!). Acordei com dor-de-cabeça, o pescoço doendo, a garganta seca e suado horrores. Rolei, diminui a temperatura e liguei meu ventilador com vento na minha cara. Aí sim meu sono durou, mas tive outro sonho muito esquisito.
Sonhei que fui para o inferno. Lá, ao invés do cramulhão clássico, eu vi uma formiga gigante com chifres olhando pra mim meio com raiva, meio com gozo. As milhares de obreiras riam agudo de fazer eco nas profundezas. Até que a formiga-demo se aproximou de mim e disse. "Tá sofrendo, safadão? Vai pedir pra sair? Pede pra sair!!!" E gritava, enquanto cospia fogo na minha cara. Apavorado, cansado, doído, eu pedi pra sair. Ela gritou, elas vibraram. "Bicho fraco! Vai ficar aqui pra gente ver quanto tempo você dura", disse aquele formigão dos infernos. Eu desesperei, pedi, me humilhei. "Agora eu sei! Agora eu sei o que vocês formigas sentiram naquela época." Até que acordei e regulei todos os aquecedores. Só não consigo parar de imaginar como será a vingança das baratas.