"Em verdade vos digo", a maior ameaça à pureza das crianças são os adultos. Seja aqui na Finlândia, seja no Brasil. Pelo menos assim concluímos eu e uns amigos ontem ao papear sobre as atitudes das crianças e adolescentes em relação ao preconceito na Finlândia e sexualidade nas terras tupiniquins. No Brasil, até santidades contribuem para o fim precoce da inocência.
Meus amigos trabalham com jovens e crianças aqui na Finlândia. "Como a molecada se relaciona com os imigrantes no centro onde você trabalha?", perguntei. "O problema são os adultos", a amiga decretou. O outro mais velho complementou: "quando eu era moleque, quase não haviam negros ou pessoas diferentes. Então as pessoas sempre tinham curiosidade, uma curiosidade saudável. Afinal, era uma situação diferente." Infelizmente, concordaram, tanto naquele tempo como agora tem os idiotas crescidos. "Estes dizem coisas preconceituosas em casa e as crianças repetem na escola sem mesmo saber do que se trata. E isso vai crescendo junto com elas" Felizmente, esta tendência está diminuindo muito. Muitos projetos e ações a longo prazo tem melhorado a mentalidade por aqui. Pelo menos entre os mais novos, ser diferente tem aos poucos deixado de fazer diferença na Finlândia. Que bom, pensei. Pensei: "No Brasil, essa má influência adulta pode ser vista na sexualidade", disse.
Quando cheguei aqui, tive uma baita surpresa ao ver crianças enormes tendo liberdades infantis ao invés da pressão de ser "homenzinhos" e "mocinhas." Os pais e mães finlandeses que eu conheço - talvez dê pra generalizar a partir deles - não forçam seus meninos a beijar as meninas enquanto gozam "que casalzinho lindo!!!" pela boca. Também não me lembro de ter visto pais exibirem seus filhos e esbravejar "esse aqui vai ser o terror das menininhas" ou repetir "mostra o piruzão pra titia" ao arriar as calças do molecote. As crianças que eu conheço aqui lêem livros e jogam jogos "bobos", vestem roupas coloridas e aprendem desde cedo que têm coisas que elas não podem ver ou fazer porque "não é pra criança" ao invés de serem censurados com um "não pode porque é feio, pecado e ruim" e pronto. Eu não me lembro de ter ouvido mães ou pais finlandeses dizerem "pode brincar, mas com os meninos não" enquanto elas correm para se divertir na floresta. Ou existe alguma maldade entre crianças de sexo oposto que brincam entre si senão aquela suspeita pecaminosa dos adultos?
Quer dizer, diferente da Finlândia, no Brasil a gente é criado desde cedo sob vários símbolos sutis ou explícitos de sexualidade. Eu tinha uns nove anos e já cantava ♪♫ meu pipi no seu popo, seu popo no meu pipi ♪♫ e ai do moleque que invertesse os pronomes. E o pior é que esses comentários, hábitos ou ações já estão tão enraizados no nosso cotidiano que quem os questiona é ironicamente tido como o maldoso que vê coisa onde não tem. Pra muitos, vai parecer que eu estou exagerando. Eu sei que alguns vão pensar assim porque eu teria pensando assim antes de ter vindo para cá e visto relações diferentes de adultos com a infância. Até mesmo em momentos de purificação da alma, como na confissão católica, eu me lembro de ter sentido a maldade adulta. Mas só me liguei nela como problema ao contar sobre minha primeira e única confissão a Wife. Foi esses dias. Quando falei, ela pulou na cadeira espantada e, com os olhos azuis esbugalhados, gritou: "O quê!? Ele te perguntou isso?"
Perguntou. Eu com nove ou dez anos sentado na cadeira, em frente ao altar de frente pra ele (não tinha o confessionário como nos filmes). Eu cheio de medo, sem graça, cabeça baixa com medo dele me reprovar por ter colocado pó de mico no ventilador da escola, ou por ter quebrado a janela do vizinho com a bola de futebol. Eu com pavor de todas as imagens de santos e santas me olhando por todos os lados enquanto a luz vermelha do sacrário indicava que Cristo estava ali pra ouvir eu admitir que tinha falado palavrão ou roubado umas moedas da bolsinha da minha mãe pra comprar bala. Qual pecado será pior pra um moleque de nove, dez anos? Logo descobri.
"Você já teve penetração com alguém?", ele perguntou. Eu sabia o que ele queria dizer pois, com nove ou dez anos, já sabia o que era saliência porque algum adulto já tinha me falado que isso era pecado dos brabos. Mas também já sabia que era humilhante pra um homenzinho admitir não ter tido a experiência. Imagina se os coleguinhas mais velhos da escola descobrissem? "Sim", menti.
"Com um menininho ou uma menininha?" ele continuou. Eu já sabia que saliência com outro menininho era fazer meinha, e meinha era coisa de bichinha. E ser bichinha era humilhante para um homenzinho de nove ou dez anos. "Menina", menti.
"Pela frente ou por trás?", ele continuou. Minhas mãos suavam. Qual era a diferença entre "frente" e "trás"? O que era menos pecado? "Frente", chutei. O padre deve ter ficado aliviado. Eu não. Me senti péssimo, com medo de Jesus saber que eu pecava ao inventar pecados. Mas melhor pecar com pose de homenzinho feito do que fama de mariquinha, essa foi minha lógica com nove ou dez anos. "Ide em paz, meu filho", encerrou os procedimentos e chamou o próximo pecador infanto-juvenil.
Não lembro da minha penitência, mas sei que nunca mais me confessei. Só que por muito tempo me puni por ter mentido ao santo padre que só queria meu bem. Até ouvir o "quê?!" da Wife. Aí que me liguei que se tive uma infância repleta de pensamentos sexuais e preconceituosos foi porque alguém - como este malicioso homem de batina e os pais abitolados finlandeses - confundiu minha visão de mundo. Reclamamos muito do fim da inocência e da pureza das crianças no Brasil. Foi aqui que vi que tudo não está perdido. Na Finlândia que eu vivo (há outras bem diferentes, não esqueça) eu me liguei que as crianças podem permanecer inocentes e puras, e crescer respeitosas e maduras, se nós, malditos adultos, não as contarminarmos desde cedo com nosso próprio pus.
"Pela frente ou por trás?", ele continuou. Minhas mãos suavam. Qual era a diferença entre "frente" e "trás"? O que era menos pecado? "Frente", chutei. O padre deve ter ficado aliviado. Eu não. Me senti péssimo, com medo de Jesus saber que eu pecava ao inventar pecados. Mas melhor pecar com pose de homenzinho feito do que fama de mariquinha, essa foi minha lógica com nove ou dez anos. "Ide em paz, meu filho", encerrou os procedimentos e chamou o próximo pecador infanto-juvenil.
Não lembro da minha penitência, mas sei que nunca mais me confessei. Só que por muito tempo me puni por ter mentido ao santo padre que só queria meu bem. Até ouvir o "quê?!" da Wife. Aí que me liguei que se tive uma infância repleta de pensamentos sexuais e preconceituosos foi porque alguém - como este malicioso homem de batina e os pais abitolados finlandeses - confundiu minha visão de mundo. Reclamamos muito do fim da inocência e da pureza das crianças no Brasil. Foi aqui que vi que tudo não está perdido. Na Finlândia que eu vivo (há outras bem diferentes, não esqueça) eu me liguei que as crianças podem permanecer inocentes e puras, e crescer respeitosas e maduras, se nós, malditos adultos, não as contarminarmos desde cedo com nosso próprio pus.