O Léo continua na Finlândia, mas o blog chegou ao fim. As postagens favoritas do autor estão aí para a memória dele e de quem tiver sem nada melhor pra fazer além de ler blog velho. :) Qualquer coisa, entra em contato por e-mail: lecczz@gmail.com.

domingo, 20 de setembro de 2009

Contos de Lahti ou Loucuras do Léo?


Foi derrubado da bicicleta e ao que seus joelhos se espatifaram no chão ele recebeu socos e pontapés de todos os lados. Dizem que Lahti é a Chicago finlandesa, mas ele nunca pensou em ser atacado assim, bem no centro da cidade.

"Mas, mas mas...o que é isso!?", gritou antes de soluçar e cuspir o sangue que lhe subiu pela garganta depois do chute no estômago que recebera.

"Nunca mais, entende? Nunca mais!!!", ouviu antes de seus olhos apagarem.

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...1 minuto antes...
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A senhora tentou mas não conseguiu empurrar seu andador a tempo de passar antes da mudança do apito mais rápido ao mais lento. Apertou o botão, ajeitou suas bolsas de compras e esperou. Meio sem vontade, mas esperou porque é isso que se deve fazer.

A mãe segurou os braços da filha e explicou: espera-se pois assim é a lei, é a ordem. O certo. E todos devem fazer o que é certo e ela devia aprender a controlar sua energia inconsequente.

Do outro lado, o rapaz parecia preocupado. De longe se via que ele queria aproveitar o ritmo que lhe conduzia em seu iPod e seguir seu caminho numa velocidade que lhe recuperasse o tempo do atraso. Mas parou, parou desesperado porque é isso que se faz. Não se deve desrespeitar as senhoras, não se deve dar mau exemplo às crianças.

beep......beeeeeep....

O apito se arrastava e se perdia no silêncio. Pararam, olharam e nada além do apito escutaram. De um lado, nada vinha. Do outro, nenhum motor se fazia ouvir. Nada. Mas ao olhar pro alto, ele ainda estava lá: vermelho como o sangue que correria pelo asfalto caso eles ousassem colocar os pés além dos limites da calçada.

"Vambora, velha! Se você for eu vou e dane-se a educação da criança. Se nenhuma delas estivessem ali, eu já estaria lá...que merda!", pensou o rapaz ao frangir a sombrancelha como se fulminasse a menina e pressionasse a senhora sem que a mãe notasse a conspiração da que seria vítima.

"Depois falam que essa geração de atualmente não respeita a ordem. Veja só: a menina ensinando a filhinha a se comportar...o jovem apressado, mesmo apressado, esperando...dá até orgulho", pensou a senhora enquanto seus olhos agradeciam ao rapaz e seus ouvidos se deliciavam com a moça e a filha.

"Está vendo? É isso que se faz. Mesmo que não venham carros, se espera até que o apito se apresse e que o mocinho vermelho se acalme e fique verde. Aí sim, você pode continuar, entendeu?", falava a mãe inclinada para olhar nos olhos da filha. Virava seu rosto para o rapaz e para a senhora para justificar sua explicação.

"Mamãe, de bicicleta pode atravessar?", perguntou a menina ao olhar sobre os ombros da mãe. "Porque aquele moço lá não parece que vai parar pra esperar não," explicou ao ver um homem de aproximadamente 30 anos vindo em disparada detrás do rapaz.

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beep........beeppp....
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A mãe virou-se e viu que o homem não iria parar. A senhora também percebeu e as duas se entreolharam. Ao ver a reação das mulheres, o rapaz olhou para trás e viu o homem como uma bala se aproximando. Voltou os olhos para as mulheres. Os três ao mesmo tempo enrugaram a testa de raiva, firmaram os punhos. Com os dentes a mostra, rangiram em cólera.

A criança esperava a resposta quando viu o rapaz com o iPod esticar o braço direito no momento em que a roda dianteira da bicicleta atingiu o asfalto da rua. Desequilibrado, o homem cambaleou mas seguiu. Não por muito tempo.

A senhora empurrou seu andador na direção da bicicleta. As compras voaram enquanto o homem era arremessado por cima do guidão. Antes de cair, a mãe foi rápida e lhe deu um sopapo nas costas. O rapaz com o iPod correu para cima do homem. Dane-se a luz ainda vermelha. Ele lhe dava os chutes, enquanto a senhora o batia com o pepino e a mãe lhe esmurrava a cara. A menina chorava enquanto suas lágrimas se misturavam ao sangue do homem.

"Nunca mais, entende? Nunca mais!!!! Nunca mais você vai atravessar o sinal vermelho, mesmo que não venha carro; mesmo que a rua esteja deserta! Nunca mais!", gritavam os três enquanto a menina chorava com o rosto branco vermelho de sangue e desespero.

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beep beep beep beep beep...o apito intensifica. A luz verde acende.

Esfrego meus olhos e vejo o rapaz impaciente correndo em direção ao ponto de ônibus. A senhora empurra vagarosamente seu andador a caminho de casa. A menina sorri e saltitante atravessa a rua livre das mãos da mãe, que sorri ao ver a filha respeitar a lei da cidade. Ao longe, vai o homem que atravessou o sinal antes que o verde acendesse.

Eu sabia que assistir aos filme sobre "Kafka" com o Jeremy Irons, "The Tenant" (O Inquilino) de Roman Polansky, "Inglorious Basterds" de Tarantino, "Vertigo" de Hitchcock e começar a ler "Vigiar e punir" do Michel Foucault na mesma semana não me fariam bem...

...ainda assim, será que eu sou o único que tem esses pensamentos ezquizofrênicos ao respeitar à risca e as vezes à contra-gosto as regras de trânsito para pedestres e ciclistas aqui na Finlândia?