Assim que coloquei os pés no prédio Metsätalo da Universidade de Helsinki, não deu pra evitar meu pensamento em Fabiano. Você o conhece? Eu já o conhecia de passagem, mas ele fora me apresentado um dia antes numa de minhas viagens para Tampere. Dali em diante - até hoje - não parei de pensar como somos muito parecido apesar de nossas vidas serem tão diferentes.
Fabiano é ruivo, de pele encruada pelo tempo dos anos e da secura do sertão nordestino brasileiro. Atravessou secas a procura de uma vida mais farta, para que pudesse tirar seu sustento e o alimento para sua mulher e seus dois filhos. Desde os tampos raquíticos de criança ele vive se desdobrando entre o barro seco, os esqueletos bovinos e a incerteza. Não quer muito da vida além de vivê-la dentro do pouco que ele considera o bastante.
Na verdade não nos conhecemos pessoalmente. Não sei se ele ainda vive, mas falo dele como se vivesse porque não devemos jogar no passado verbos que decretariam a morte e espalhariam mau agouro à um vivente. Sua história foi me soprada por Ramos, de quem também conheço pouco, mas que me acompanhou esses dias a caminho da universidade onde sou gringo. Vai saber se ele de fato conhece esse tal Fabiano. Pode ser fruto da cabeça dele, pois a riqueza de detalhes sobre a vida alheia me causou suspeitas. Uns chamariam isso de fofoca. Mas mesmo que seja, como o Ramos sabia que o sofrimento da alma de Fabiano no dia seguinte responderia a inquietação da minha?
Fato é que, verdade ou não, esse Fabiano sofre. Sua vida seca é marcada pela exploração de sua força durante toda sua vida de cabra submetido às leis e ordens dos patrões. Uma vez, foi preso por um guardinha de nada (mas guarda) que se irritara porque Fabiano não se despediu ao que os dois perderam muito dinheiro jogando num bar. Pode? E isso o fizera perder as estribeiras ao ver que em certos lugares, ele nada mais é do que nada.
Ramos disse que em casa - quando tem uma - ele é soberano. Mesmo quando não tem teto nem nada, ainda assim ele é o herói do filho pequeno e o tirano do filho mais moço. Da mulher, é o companheiro que mesmo no mais profundo silêncio de fome lhe dá forças para continuar com esperanças de que o sofrimento um dia se finda. Só que essa força se derrete quando ele sai de seu...da sua, como dizem por aí, zona de conforto.
Na rua, não questiona. Se lhe tentam ludibriar no mercado ou no bar, cala-se pois provavelmente a culpa do erro é dele. Se a venda lhe rende menos do que sua esposa calcula, a culpa é da esposa que não sabe contar tão bem quanto o branco rico. Um dia, quando levou a família pra uma quermesse, tomou um porre e gritou feito louco contra todos. Só bêbado para soltar a voz e se fazer notar na multidão. Sóbreo, se convence de que ali não é seu lugar. Não tem jeito com as palavras, não as domina. Por isso preferia o silêncio e a fala gutural do pasto, onde é forte, bravo. Na cidade, ele reconhece e aceita sua insignificância. É nessa postura, de certo modo, que nos unimos em semelhança.
Meu estômago já estava desassossegado ainda no trem e se retorcia ainda mais ao que me aproximava da estação na capital. Certamente estava ansioso. O encontro me abriria portas em Helsinki pra que eu fizesse contatos com intelectuais que se dedicam há décadas e anos ao terreno onde eu gostaria de gravar o meu nome. O problema é que também me sentia como Fabiano: angustiado por me achar insuficiente diante dos donos das palavras.
Logo eu que sempre fui certo de mim por onde passei. Ali, eu certamente me calaria, como me calei por muito tempo em algumas palestras do mestrado. A Wife brinca que eu sou quase um finlandês típico: "não vou falar porque certamente tem um ou outros que sabe mais do que eu." Mas Fabiano nunca pôs os pés em algum chão que não fosse rachado pelo sol a pino sob a sombra fina da Linha do Equador, então isso é coisa de gente e não dos finns. Você se sente assim as vezes?
Ao apertar o botão para o sexto andar, eu lembrei das últimas palavras do Ramos sobre a vida do Fabiano. Antes de encerrar, meu companheiro de viagem deixou entender que o sertanejo calejado e sua família partiram em busca de uma vida que assegure aos filhos uma vida diferente da dele. Esse é o sonho que a mulher dele o convenceu a seguir. Ela não queria que eles passassem quando adultos pelo sofrimento da infância. Arrumaram as trouxas e as carnes salgadas das aves de rapina e, calados, seguiram sabe-se lá pra onde.
Ao que tudo indica, Fabiano não se deixou mudar e continua resignado sobre seu papel na cidade: sempre será empregado, sempre será insignificante. Talvez seus filhos dependam menos da chuva pra mudar suas vidas, talvez tenham mais apreço pelas palavras. Mas a vida dele era aquela e daquele jeito viveria até que os urubus viessem lhe beliscar os olhos como faziam com os bois moribundos a beira do rio seco.
Abriu-se a porta da sala e fui convidado a entrar. Sorri ao senhor dos livros que leio na universidade. Nos cumprimentamos, nos sentamos e nos apresentamos oficialmente. A roda girou de maneira em que eu fosse o último. Minhas mãos tremiam como tremera Fabiano sufocado pelo terno em seu surto na quermesse. Todos faziam um pouco que pareceu muito ao que falavam de seus trabalhos...meu sorriso desfarçava o pavor que meus olhos descaravam.
Em breve, eu teria a voz, mas teria as palavras?
Fabiano me acenava como se me chamasse para seguí-lo numa estrada distante dos lugares ao qual não pertencemos. Depois dessa menina sou eu...
Olá, me chamo Leonardo. Acabei de terminar minha pesquisa prévia sobre comunicação em organizações não-governamentais e pretendo desenvolver um trabalho único de investigação do processo de construção de identidade coletiva. Espero que eu aprenda com vocês e contribua pro grupo com meu trabalho. Obrigado.
Meus dedos continuavam tremendo, mas de excitação, como se não acreditassem. Meus olhos se levantaram depois daqueles segundos em que nada viram além dos papéis sobre a mesa. No olhar de cada um dos componentes da mesa eu vi interesse e respeito. No reflexo do vidro, eu vi Fabiano sorrir e virar as costas antes de continuar sua caminhada.
Ali foi a primeira vez em que eu me senti totalmente diferente dele apesar de ter sido muito parecido durante muito tempo. Ali, eu o vi realizado pela minha audácia de desrespeitar os papéis que nossas vidas tentaram por muito tempo nos fazer atuar. Falei, falei porque acho que tenho o que falar. Fabiano também acha, mas não fala. Ele busca uma maneira de viver de bem com si, mesmo que calado. Porém, fica sempre contente quando um ou outro se liberta e flutua igualmente pelas roças e cidades como senhores de suas próprias fortunas.
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* Este post é dedicado aos 70 anos da publicação do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
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