O Léo continua na Finlândia, mas o blog chegou ao fim. As postagens favoritas do autor estão aí para a memória dele e de quem tiver sem nada melhor pra fazer além de ler blog velho. :) Qualquer coisa, entra em contato por e-mail: lecczz@gmail.com.

sábado, 12 de setembro de 2009

O "Racista" na TV Finlandesa*

*Desculpa, mas eu não resisto. O Título é exagerado como capa de jornal sensacionalista de propósito. Se você ler o texto, vai ver que as coisas não são tão simples assim. As aspas indicam: relativizem a palavra racista, não só aqui mas na vida.

Ontem a noite, no canal MTV3, estreou o programa Totuuden Hetki (tipo "A Hora da Verdade") onde uma pessoa comum (não-celebridade) passa por 7 baterias de perguntas pessoais e cabeludas enquanto um sensor de verdade julga se o que foi respondido é verdadeiro ou falso. Se a voz feminina disser "Totta" (Verdadeiro), o jogo continua. Se não...babau. Além disso, os convidados (amigos e família do participante) poderiam cancelar uma das perguntas.

De cara, o programa parecia que seria interessante.

Pessoalmente, foi uma boa surpresa saber que eu consegui acompanhar algumas das perguntas sem a ajuda da Wife. Ainda não falo finlandês, mas fiquei feliz em ver que não estou mais totalmente perdido. Só que depois de algumas perguntas pesadinhas - tipo "Você gosta de transar com sua esposa?" enquanto a esposa sentava do outro lado do palco parecendo envergonhada, ou "Você já teve atração sexual por sua amiga Paula?", sentada do lado da mulher dele -, chegou a bateria de perguntas que valeriam 10 mil euros. Nessa hora, a mulher do cara, a amiga e a irmã se sentiram muito mal. Nós também.

"Você preferiria ter vizinhos finlandeses à vizinhos imigrantes?" foi mais ou menos a primeira pergunta. "Sim", o cara disse. "Totta" a voz respondeu enquanto a família comemorava o acerto, mas não tinham onde colocar a cara de tão sem-graça que estavam. A relação dos finlandeses com imigrantes - e vice-versa - é um dos assuntos mais sensíveis do debate público. É no mínimo complicado.

Há muita confusão na compreensão de imigração. Muitos acham ruim porque eles acreditam que os imigrantes vêm pra tirar proveito do sistema social daqui. Nesse caso, muitos se referem aos africanos (o alvo mais comum é o pessoal da Somália). Há um tempo atrás, ao conversar com amigos de amigos numa rodada de cerveja, um deles disse:

"Você tá tranquilo, porque você estuda. Você faz alguma coisa. Agora tem esse pessoal (deduzi que fossem os africanos) que vem pra cá e não faz nada. Os turcos, você vê. Os turcos vêm e abrem pizzaria, kebab, eles tentam trabalhar e tal. Esse pessoal fica só sugando"

Como tem um tempinho, eu não lembro se o que isso que o cara disse foi antes ou depois dele tentar tirar de si o peso de suas palavras: "Eu não sou racista, mas..." O problema desse ponto de vista é que as pessoas falam e, ao passo que começa o telefone sem-fio (fofoca), os dados concretos são ignorados. Se mais informações oficiais fossem discutidas, esse papinho não teria tanta repercussão. No site do Finnish Refugee Council tem umas perguntas (em inglês) que falam justamente sobre os discursos mais comuns que rolam por aqui.


Outro dia eu estava falando com a Wife e alguns amigos que é muito estranho quando pessoas vêm falar comigo - principalmente pessoas q não conheco, tipo em bar e tal - sobre como imigrantes só querem saber de montar nas costas do governo. Eu costumo brincar: "Acho que o pessoal, assim que sabem que eu sou brasileiro e estudante, pensa que eu sou hóspede e não imigrante...rs"Tá, tem pessoas que querem exatamente tirar essas vantagens, inclusive brasileiros também (por mais charmosos e simpáticos que sejamos) além de alguns finlandeses espertinhos. Afinal, tem gente que se acha malandro em qualquer parte do mundo. Mas daí a generalizar são outros quinhentos.


Enfim, depois daquela pergunta embaraçosa, o cara recebeu outra no mesmo padrão: "Você já proibiu seus filhos de brincar com filhos de imigrantes?" O cara respondeu "Kyllä!" (sim) e a voz feminina confirmou: Totta.

A platéia já não mais aplaudia com tanta empolgação. A irmã do cara arregalava os olhos, a amiga e a mulher pareciam que estavam morrendo de vergonha e com pena do cara. Ele justificou dizendo que as vezes as brincadeiras dos pequenos estrangeiros era muito bruta.

Compreensível e justificável. Essa pergunta poderia servir tb pra explicar qualquer tipo de veto às crianças (quem nunca levou bronca pra não brincar com esse ou aquele pra não se machucar?). Mas naquele contexto, só serviu pra aumentar a impressão negativa surgindo como uma nuvem carregada de estereótipos em cima do cara.

Quando o camarada provavelmente pensava que as coisas não poderiam ficar piores, o apresentador apontou, mirou, calibrou, o cara do áudio caprichou no som de suspense e o câmera jogou o foco nos cornos do cara no momento em que ele ouviu:

VOCÊ SE ACHA RACISTA?

Na platéia o som gutural de como se dissessem: "Ui", ou "Jesus", ou "oi oi oi..." (maneira finlandesa de dizer tsc tsc tsc...em situações desconfortáveis). A mesma reação aqui em casa. Naquela hora, o programa deixou de ter a graça que poderia. O cara olhava pro alto, sabia que diria sim. A irmã dele abaixou a cabeça, a mulher e a amiga balançavam a cabeça mais resignadas. Sabiam que ele diria sim. E ele disse:

Kyllä! com a voz confirmando: Totta.

A platéia vaiou de leve. A irmã parecia não acreditar e demonstrava tristeza. A mulher e a amiga continuavam cada vez mais envergonhadas. É o tipo de coisa que muitos - finlandeses, brasileiros, seja lá nossa nacionalidade - têm dentro de si mas que dificilmente se admitiria em público.

E ele falou, em rede nacional.

Confessou um dos piores pecados da nossa sociedade global contemporânea que, como todo pecado, infelizmente nunca é discutido racionalmente. Parece um dogma ainda pior do que aqueles das religiões. Afinal, esse dogma é social e não-justificável pelas leis divinas (a maior das verdades do mundo pra quem acredita nelas). Logo, o mal está incuravelmente no indivíduo.

Você pode pecar, mas se rezar/orar/refletir/etc. , você tem cura. Mas se você é racista, você vai queimar no inferno porque isso está encruado no seu ser, forjado na sua testa como marca que nunca irá desaparecer.

Eu juro que vi a marca do ferro em brasa da opinião pública escrevendo racista na cabeça daquele cara.

Fiquei imaginando ele passando na rua e os vizinhos de outros grupos étnicos dele virando a cara, cuspindo no chão. Os filhos dele sendo massacrados na escola por causa do pai. Ele, curvado e envergonhado indo pro seu trabalho e no trabalho sendo julgado por quem quer que seja que lhe cruze o caminho. Será que isso vale os tais 10 mil ou 20, ou 30? Vale por você ser rotulado pro resto de sua vida como o cara que falou que era racista na televisão? Vale por você virar exemplo pra pessoas mal-intencionadas dizerem: "não falei que finlandeses eram racistas? você viu o cara na tv?" ou "Eu sou finlandês mas não sou racista como aquele carinha na televisão."

O problema do racismo é que ele rotula e a partir disso, dificilmente haverá relativização. O pior: muitos confudem racismo com uma série de outras coisas. Pra muitos desavisados, racismo é o mesmo que desrespeito por qualquer coisa do outro. Esses dias, um cara disse em um fórum da internet: "quando os imigrantes vêm pra cá e falam mal dos finlandeses, do salmiakki (aquela bala amarga que eles adoram), isso não é racismo..." Não gostar de um doce (mesmo que ele seja preto) é racismo?

Outros têm preconceito sobre o desconhecido. Entenda-se preconceito aqui como "ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério." Vai se criando uma bola de neve a respeito do outro que, quando menos se percebe, essa idéia é passada ao status de verdade. Aí as diferenças religiosas, culturais, essas diferenças vão se tornando barreiras, muros cada vez mais altos que fazem com que os indivíduos nem se dêem o trabalho de atravessar pra conhecer o outro lado. Lembra da piada do preto correndo ser ladrão e do branco correndo estar atrasado? Então.

A pergunta seguinte pro cara seria uma pá de cal pra ele em seu trabalho de supervisor na IBM. "Você contrataria um africano (ou foi imigrante?) pra trabalhar em sua equipe?" Ao que ele virou os olhos provavelmente pensando "fudeu...", a amiga correu e apertou a lâmpada e cancelou a pergunta. Imagina a merda que daria pro cara se ele dissesse "Não" e a maquininha dissesse "Totta"?

Como a Wife disse, imagina a merda que seria se ele já tivesse entrevistado algum imigrante e não contratado o cara? Ele certamente precisaria ir até o final e ganhar os 50 mil, pq depois disso acho que dificilmente a empresa o manteria. E penso eu, ele não seria contratado em nenhum outro lugar. Você vincularia a imagem de sua empresa à um racista? Pq naquele instante, diante de todo país, era isso que ele era. Por mais hipócritas que muitos que o julgassem assim fossem - pois muitos pensam na mesma lógica do cara - ele ali pode ter passado a ser parte da escória que envergonha nações. Aquela que dizem ser pequena - a minoria, como dizemos no Brasil - que na verdade paga o pato por nossa mania de não secularizar e iluminar esse lado escuro (e escondido) de nossas vidas.

Aí trocaram a pergunta: "Você convidaria islâmicos para juntar em sua casa?" "Não", ele respondeu. "Totta", a maquininha confirmou. "Eu não saberia o que cozinhar pra eles", ele justificou. Sim, ali ele já estava fazendo papel de ridículo principalmente pelas respostas anteriores.

Por fim, ele seguiu adiante, garantiu 20 mil e não quis enfrentar as outras duas perguntas que valeriam 30 e 50, respectivamente. Fez bem. Fez mesmo?

Esses tipos de perguntas não podem ser respondidas em joguinhos de "sim" ou "não" em rede nacional. Nesse jogo, eram três envolvidos intencionalmente: a emissora querendo audiência, o cara querendo uma grana, e os telespectadores querendo entretenimento. Quem mais ganhou com isso tudo foi a emissora. O cara ganhou uma merreca se comparada ao tamanho da cicatriz social que ganhou na testa. E nós, ganhamos um incômodo tão grande pra considerar não mais assistir ao programa.

Não que queiramos fugir ou evitar o assunto (a cor da minha pele - pra mim - e o fato de ser casado com um negro - pra Wife - nos impedem de evitar o assunto, por mais que a gente esteja cansado dele). Mas só achamos que ver pessoas correndo o risco de prejudicar suas vidas sociais (talvez suas integridades físicas tb) por um vintém e pelos índices de audiência não tem graça nenhuma.