O Léo continua na Finlândia, mas o blog chegou ao fim. As postagens favoritas do autor estão aí para a memória dele e de quem tiver sem nada melhor pra fazer além de ler blog velho. :) Qualquer coisa, entra em contato por e-mail: lecczz@gmail.com.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Caralho!

Desculpa, não tinha outra palavra. E a falta da tarja preta censurando o palavrão também é proposital. Não tem outro jeito de demonstrar exatamente o que eu passou na minha cabeça assim que eu vi a primeira disputa no estádio do Centro Esportivo (Urheilukeskus) daqui de Lahti.

"Caralho", como você sabe, serve para expressar todos os tipos de emoções. Não é como "merda", que geralmente se refere à coisas ruins. No post em que descrevo como perdi na corrida pra um peladeiro finlandês, o que me veio à cabeça imediatamente foi um alto e sonoro "Merda!" assim que caí, seguido de um "Caralho..." suspirado na respiração esbaforida de um velho moribundo. Eu poderia ter gritado "Filho da puta!!!", mas convenhamos: a culpa do meu mal-estar físico não era do cara. O "Merda!" refletiu meu momento, e o "Caralho..." meu desespero. Mas eu também usaria a palavra pra comemorar um belo gol, por exemplo. Então "Caralho!" é o Bombril das emoções expressas em palavras.

No estádio, vi senhoras e senhores de todas as categorias entre 35 e 85 anos competindo no World Masters Athletics Competitions (WMA) realizado aqui na cidade entre o dia 28 de Julho e 08 de Agosto. Arregalei os olhos com as senhoras de 60 e poucos terminando 200 metros livres em menos de 40 segundos. Com o sorriso no canto da boca, meus olhos brilharam. Como o som dos cristais balançando ao vento e batendo levemente um no outro fazendo aquele som gostoso de mágica, as vibrações das minhas cordas vocais subiram pela minha garganta e, ao atravessar meus dentes, se fizeram ouvir levemente: "Caralho!" Em seguida, blasfemei colocando o Patrão logo depois da representação verbal da genitália masculina: "Meu Deus!"

Eu admito: quando saí de casa, pensei que veria os velhos correndo lentamente e se superando nas suas dificuldades. Que nada. Surpreso, acompanhei os milhares de expectadores nas palmas batidas dos primeiros aos últimos colocados. O som das mãos era orgulho para filhos, netos e talvez bisnetos. Também era a alegria de ver amigos terminando as provas e sorrindo. Pra mim, eram tapas, daqueles que se dão com as palmas e as costas das mãos, incessantemente, como se dissessem: "Toma isso! É para você aprender a não duvidar de nós! Nunca mais!!!"

O "Caralho!" de dor me saiu disfarçado no sorriso. Meus cotovelos doeram como se tivesse caído de bruços no asfalto da pista e olhado os senhores e as senhoras passando por mim e rindo como se eu fosse aquele menino engraçadinho e simpático na minha derrota, que ainda tem muito a aprender da vida. Enquanto os via passar feito mísseis, ou saltando feito crianças no banco de areia ou sobre a a barra, eu ficava admirado com seus corpos. "Aquele ali deve ter 30! É gato*, só pode!!!", resmunguei antes de ver no placar o indicador M65, indicando a idade mínima de cada competidor das categorias. O cara fez 200 metros em 23 segundos: "Caralho!!!!" "Mas todos eles já praticam esportes há séculos", questionou uma amiga.

Tá, pode ser. Mas no caso de Maria Correa Alves, por exemplo, eu vi uma história que parece ser muito comum entre os participantes. Ela nasceu em 1925 e sempre gostou de esportes. Só que no Espírito Santo, onde nasceu, não haviam incentivos e ela não fez nada até a idade adulta. Ao ver seus filhos já crescidos, ela decidiu correr. Por conta própria e quase sempre sem incentivo do governo, Maria já participou de maratonas no mundo todo, como a de Nova Iorque. Hoje, acompanhada da filha Nilda, sua fisioterapeuta, ela está participando dos jogos aqui em Lahti. Na semana passada, ela conquistou a medalha de prata na caminhada de 8 km. "Poxa, mas só foram duas competidoras", ela explica como se quisesse desmerecer sua medalha. Mas uma senhora de 83 anos que participa e termina 8 mil metros em 1h e 22min merece ou não medalha? Merece ou não ver um muleque invejoso de 30 anos pensar nela como um exemplo pra vida?

E não é só ela. O que mais se tem por aqui nesses dias são momentos propícios pra se sair por aí dizendo sonoros "Caralho!" aos ventos. Se você se acha acabado (a), olha o cara que parece ter sofrido AVC correndo os 200 metros. Se você se acha gordo (a), olha a senhora na categoria W75 correndo ao seu ritmo sacudindo sua pele flácida e seus "pneuzinhos" pra terminar a prova sob os aplausos das arquibancadas. É difícil sim, mas o que todos os participantes têm em comum - sejam os ex-atletas profissionais ou os amadores - é a vontade de viver bem e feliz consigo e com seu corpo. Querem viver mais e bem e pronto. Aí eu, na cadeira azul, ao sol, pensei: "Caralho..." não como "porra, os velhinhos lá correndo pra cacete e eu aqui na merda...", mas como "O que eu estou esperando pra transformar minha vida, meu corpo e tentar ser ainda mais feliz?"

...

* "Gato" é um termo do futebol que se refere a atletas que falsificam documentos para poder competir em categorias diferentes de sua real faixa etária.

Para ver e saber mais das competições, visite o site do WMA (clique aqui). Têm fotos e vídeos tb. Ainda esta semana eu voltarei ao estádio e vou tirar mais fotos pra colocar aqui (ou no flickr).

Este post é um complemento/resposta para o texto "É preciso mudar alguns hábitos" escrito pela Aline Pereira, no blog Manhã com Bafo de Menta.