Tinhamos decidido: eu iria ao mercado de Hakaniemi no dia 23. Ou seja, na manhã seguinte. Ajustei o alarme do celular pra bem cedinho, separei a mochila surrada, coloquei o cartão do banco perto do cartão do ônibus e da chave do apartamento na mesa da cozinha. Assim, tudo o que precisaria estaria no caminho quando acordasse. Num pedaço de papel, a lista do que precisaria: salmão defumado, salmão fresco, silli (herring nórdico) em conserva, presunto assado e queijos.
As compras em Hakaniemi são uma tradição compartilhada por muita gente em Helsinki. Por isso é bom ir cedo: o lugar é pequeno e a quantidade de gente é enorme. Isso acaba gerando um empurra-empurra muito desconfortável. Fui dormir me preparando psicologicamente para a aventura do dia seguinte.
...
No susto acordei e pulei da cama. Não ouvi o alarme. Fui pra cozinha, abri a janelinha 23 do calendário do advento, troquei de roupa, engoli duas fatias de ruisleipää com suco de frutinhas da floresta, peguei o que precisava, vi o horário do próximo ônibus pra Hakaniemi e saí. 20 minutos depois cheguei na praça onde fica o mercado.
Como eu tinha dito, fazer as compras de Natal no mercado de Hakaniemi talvez seja uma das maiores tradições desta época do ano na capital da Finlândia. Aberto em 1914, o mercado hoje é reconhecido por ter lojas tradicionais especializadas com produtos frescos e de ótima qualidade. E o Natal talvez seja o seu auge comercial. Quase todo mundo vai lá: idosos, jovens e crianças. Todos atrás do frescor dos produtos e da experiência de manter a tradição viva mesmo que custe um pouco mais caro do que as cadeias de supermercado. Em geral, o mercado de Hakaniemi é um lugar muito agradável com seus aromas, sabores e receptividade. Mas o Natal é um caso a parte. Por isso eu fui preparado.
Antes de entrar, encontrei um cantinho vago para amarrar meu espírito natalino. Como todas as outras pessoas lá dentro, ali fora do mercado eu deixei minha gentileza, educação e cordialidade presos num cadeado vermelho. Em seguida, tirei um soco-inglês do bolso, frangi os olhos e entrei.
Assim que passei pela primeira porta, vi que esse ano seria intenso. Ao passar pela loja de doces, uma velhinha com capacete de goleiro de hóquei me jogou pra longe. Ela estava correndo para fora com o presunto de Natal embaixo do braço. Quando tentei levantar, meu pé foi puxado com o guarda-chuva por um velinho que vinha atrás de mim. Caí e levantei, mas o velho entrou primeiro. Rindo.
Assim que passei pela primeira porta, vi que esse ano seria intenso. Ao passar pela loja de doces, uma velhinha com capacete de goleiro de hóquei me jogou pra longe. Ela estava correndo para fora com o presunto de Natal embaixo do braço. Quando tentei levantar, meu pé foi puxado com o guarda-chuva por um velinho que vinha atrás de mim. Caí e levantei, mas o velho entrou primeiro. Rindo.
Parecia que toda Helsinki estava ali. Os corredores devem ter uns dois metros e meio de largura. Nesse espacinho, tem a fila de gente que vai, a fila de gente que vem, todos aqueles que param nos balcões das lojinhas e os sem noção que param no meio do caminho sem motivo aparente.
Espremido, tentei chegar na loja de peixes. Para minha sorte, uma velhinha passou abrindo caminho com sua bengala catucando canelas, espremendo dedões e acertando as partes baixas de um ou outro valentão que se recusava a deixar ela passar. Colei atrás dela e logo vi o balcão com os salmões. Mas como chegar perto com tanta gente na frente?
Espremido, tentei chegar na loja de peixes. Para minha sorte, uma velhinha passou abrindo caminho com sua bengala catucando canelas, espremendo dedões e acertando as partes baixas de um ou outro valentão que se recusava a deixar ela passar. Colei atrás dela e logo vi o balcão com os salmões. Mas como chegar perto com tanta gente na frente?
Com o soco-inglês, dei um murro no cliente da esquerda e com o cotovelo dei um chega-pra-lá na moça que estava prestes a fazer o pedido. Encostei o umbigo no vidro quando o vendedor gritou: "Seuraava!" (próximo!). Rapidinho eu gritei "minä!" (Eu!) e fiz meu pedido. Me empurrei para trás, coloquei os peixes na mochila e mirei a loja de presunto.
Mais uma vez, dei sorte. No corredor, dois homens trocavam ofensas. Na loja do lado, a mais tradicional, tinha só um salmão finlandês. O resto era norueguês. Eles brigavam pra ver quem levaria o melhor peixe (o finlandês, é claro). Nisso uma multidão se espremeu na frente da loja gritando "kotimainen! kotimainen!" ("Local!Local!") num protesto por mais salmões finlandeses.
Com o clarão aberto no caminho, cheguei rapidinho na loja de carne e comprei o presunto. Mas quando peguei meu cartão e tentei sair, um homem alto e braçudo me empurrou pra cima do balcão de compotas da loja vizinha. Tonto, limpei a geléia de framboesa do casaco, tirei os cacos de vidro do rosto e ensanguentado fui pra loja de queijos. Como eu parecia que estava bêbado, todo mundo se espremia pra deixar eu passar.
Com o clarão aberto no caminho, cheguei rapidinho na loja de carne e comprei o presunto. Mas quando peguei meu cartão e tentei sair, um homem alto e braçudo me empurrou pra cima do balcão de compotas da loja vizinha. Tonto, limpei a geléia de framboesa do casaco, tirei os cacos de vidro do rosto e ensanguentado fui pra loja de queijos. Como eu parecia que estava bêbado, todo mundo se espremia pra deixar eu passar.
A loja de queijos é a mais popular e por isso tem fila dupla: uma pra esquerda e outra pra direita. Num momento de agilidade, empurrei o primeiro de uma fila e dei um chute no outro. Com o efeito dominó dos dois lados, não foi difícil comprar o queijo. Sorri, mas não por muito tempo: o povo das duas filas se juntou, me encheu de sopapos e me jogou na rua. Desmaiei.
...
O alarme tocou e eu dei um pulo. Passei a mão no rosto e não vi sangue. Não senti dores no corpo. Aliviado por perceber que tudo tinha sido um pesadelo, levantei, fui pra cozinha e me preparei pra sair. Quando cheguei à Hakaniemi só sabia sorrir apesar do empurra-empurra e da falta de educação. No sacrifício, comprei as coisas e saí jurando que nunca mais voltaria lá nessa época. Do mesmo jeito que fiz no ano passado. Quer saber? Acho que o sufoco das compras de Natal também seja parte da tradição do mercado de Hakaniemi. No fim, com ou sem sofrimento, vale a pena: tudo lá é muito fresco e gostoso. Se vier à Helsinki, não deixe de passar lá pras compras de Natal. E não esqueça o porrete. Brincadeirinha. Paciência basta.